Diário Teatral da Coluna – Semana 19 – 06/03/2023 a 12/03/2023

Diário Teatral da Coluna – Semana 19 – 06/03/2023 a 12/03/2023

O caminho para a encenação da Coluna Prestes, enfim, parece despontar no horizonte criativo. A proposta de narrar essa história a contrapelo sedimentou-se em 8 personagens que acompanharemos na jornada da Marcha da Esperança. São sujeitas e sujeitos inspirados nas “figuras menores” da história hegemônica da Coluna Prestes, as vidas dos soldados de baixa patente, das mulheres chamadas de vivandeiras, dos pretos que recheavam as tropas, mas não estavam em nenhuma das posições de comando. Essas existências aparecem nos documentos históricos, mas sempre em breves lampejos, descrições sucintas, parágrafos, as vezes duas linhas, um nome – pequenas frestas que iluminam, mesmo que muito brevemente, o que eram essas figuras sociais, deixando uma trilha aberta para a criação poética que o teatro permite. Então a aposta é mesmo a radicalização nos núcleos dessas personagens. Contar a história de fato a contrapelo, partindo desse ponto de vista das existências quebradiças, apagadas, subalternizadas nos documentos históricos.

É uma questão crucial de qualquer dramaturgia, especialmente na lida de um material histórico para criação teatral, a eleição do ponto de vista em que os acontecimentos se passam. Especialmente quando falamos das encruzilhadas da esperança ao longo de uma marcha revolucionária: de quem é a esperança? Estamos interessados na Tia Maria, uma preta velha que comanda um dos fogões da Coluna, que fazia benzimentos, rituais, garantindo a prática de uma religiosidade de matriz africana durante a Marcha. Na Onça, outra mulher negra, que dançava maxixe, com sua amiga, Isabel Pisca Pisca, que atravessam o Brasil até o exílio na Bolívia como integrantes da Coluna. Do Cabo Firmino, homem negro, vindo da Força Pública, que se apaixona pela Enfermeira Hermínia, imigrante austríaca que cuida dos feridos ao longo de toda a marcha. Do Sargento Garcia e do Soldado Ângelo, que acompanham Prestes desde o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, alfabetizados dentro das tropas na perspectiva do soldado cidadão, que carregam a bandeira do letramento, que te ensina a ler e transformar a palavra mundo. Luiz Carlos Prestes completa o grupo de personagens, mas não como protagonista da peça. A relação é invertida: é Luiz Carlos Prestes que aprende com cada uma dessas figuras, tornando-se o proto-comunista que vai se tornar no final dessa jornada a partir das vivências, situações e processos com cada uma das 8 figuras populares disparam nele. São as relações entre essas personagens, seus processos de transformação, que acompanharemos ao longo da marcha da Coluna.

No entanto, o que pretendíamos enquanto proposta de texto teatral, esse investimento radical nessas figuras populares, colhidas no contrapelo das narrativas históricas da Coluna Prestes, não se realizou de maneira concreta na dramaturgia. Investimos muito trabalho escrevendo um texto teatral que não atendeu as expectativas que tínhamos, enquanto coletivo, com a encenação que estamos desenvolvendo. O peso do caráter histórico, literário, ainda se sobrepôs ao desenvolvimento das figuras que elegemos como portadores dessa narrativa. Não conseguimos abandonar, na encenação e na dramaturgia, um compromisso, que não pertence ao teatro definitivamente, de portar “a verdade” histórica no palco, nem o compromisso de dar uma aula de história sobre o que foi a Coluna Prestes. Também demonstrou que é possível mergulhar e retomar de maneira mais vertical o que já foi desenvolvido enquanto matéria teatral no cotidiano dos ensaios, usar de fato elementos, processos, situações, diálogos, que aconteceram no cotidiano trabalho de pesquisa do elenco. Um baque para o time de dramaturgia, com dezenas de páginas escritas que não contemplaram a caminhada do grupo. Muito trabalho que não será utilizado, como muitos dos materiais criativos que surgem no processo.

Entramos com isso em um processo de crise criativa, mais uma, o que não significa uma coisa necessariamente ruim, embora tenha momentos dolorosos e difíceis. As crises são o que movem o processo artístico, revelam os limites e fazem surgir os caminhos para o desenvolvimento do trabalho. Ainda mais em processos de pesquisa teatral, em que a sedimentação do material criativo passa por caminhos tortuosos, que não cabem no planejamento rígido de uma tabela, necessariamente, porque envolvidos com criação, arte, poesia, sonho. Apesar dos prazos, os processos criativos têm suas alquimias particulares, suas decantações específicas, e se agora, com menos de 3 meses para a estreia, tivemos essa mudança de eixo radical no trabalho, o que fazer? Embarcar no processo, confiar no teatro e no trabalho das e dos artistas envolvidos, e erguer a encenação, realizando de maneira radical os caminhos apontados depois da tempestade da crise.

Ainda nessa semana começamos essa nova trilha, com um mergulho intenso das personagens escolhidas para cada pessoa do elenco, enfim eleitas com decisão depois de trafegar por diferentes personagens históricas. Fizemos essa dinâmica que partiu de um texto-gênese e um atlas visual de cada uma das personagens eleitas, realizado por cada ator/atriz que vai interpretá-la, dando uma excelente amostra de como os temas da Coluna Prestes aparecem em cada um desses pontos de vista, sempre com um recorte consequente sobre os temas que nos interessam nisso tudo, os processos sociais pertinentes de serem ao longo da peça.

Um adendo: caminhando ao lado da sala de ensaio, as oficinas de Coro Cênico seguem a todo vapor, sem nenhuma sombra de crise, com uma gente interessada, presente e disposta, tornando possível um laboratório excepcional sobre o que é a linguagem do coro, além de um espaço de experimentação de expedientes do universo da Coluna Prestes convertidos em linguagem teatral.

Seguimos com nossa marcha da esperança, com coragem e disposição, na trilha que enfim parece despontar. A encenação da peça da Coluna Prestes parece agora possível, a escrita da dramaturgia parece ter encontrado seu farol, com a pavimentação de escolhas consequentes, que resgatam o contrapelo histórico e as encruzilhadas desse processo, partindo de um campo teatralmente potente.

 

Avante! Temos muito a fazer.

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