Diário Teatral da Coluna – Semana 5 – 28/11/2022 a 04/12/2022
A quinta semana de ensaios marcou um momento de transição temática nos improvisos e cenas experimentais, encerrando o ciclo da Revolução Paulista de 1924 e adentrando o universo da Revolução do Rio Grande do Sul, também em 1924, essa que tem como grande estrategista e liderança o capitão Luís Carlos Prestes, em seus primeiros passos até assumir o comando da revolucionária Coluna Prestes (e suas contradições).
Os ensaios aconteceram através de jogos teatrais, improvisos e cenas experimentais (que são improvisos com graus mais complexos de preparação), mantendo a rotina de trabalho da pesquisa. Os jogos de coro cênicos tiveram presença constante no início dos encontros, com jogos de coro-corifeu e dinâmicas de portar imagens a partir de documentos e trechos de bibliografias da Revolução Paulista de 1924. Fizemos também um jogo de construção de imagens cênicas com o elenco, destacando um narrador ou narradora para comentar a imagem com diferentes qualidades (narrador objetivo, narrador pessimista, narrador revolucionário etc.)
Esses textos utilizados nos jogos de coro cênico e imagens teatrais serviram de inspiração para os improvisos livres que vieram na sequência. A dinâmica foi realizada da seguinte forma: uma pessoa do elenco entra em cena e congela em uma posição expressiva; outra pessoa entra, compondo uma imagem teatral. Feita a imagem, alguém da plateia dá um título. O título serve também de provocação para o improviso, que começa imediatamente depois do anúncio do nome e uma palma. Surgiram situações e personagens interessantíssimos com essa dinâmica:
• O soldado que pede dinheiro para a revolução para uma mulher leoa.
• Na trincheira, os soldados esperam a morte.
• Enfermeira enlouquecendo na enfermaria diante de todo o desastre.
• O Engraxate, o General e o Secreta.
• As vivandeiras e a sova no jagunço.
• Os cocheiros em meio ao bombardeio.
• As bombas sobre o teto da mãe preta com seu filho.
• As mulheres guerreiras diante do horror da morte.
Ainda dentro da temática da Revolução Paulista de 1924, terminamos de realizar todas as cenas experimentais indicadas pela equipe de dramaturgia e pelo elenco. Exploramos três cenas.
A primeira foi a cena da Cozinha Pública, iniciativa tomada pelo Governo Provisório, criado pelos revolucionários depois de assumirem o comando da cidade de São Paulo em julho de 1924, a fim de alimentar as famílias desabrigadas pelos bombardeios e os soldados miseráveis nas trincheiras. A cena experimental foi composta de três momentos: I. o automóvel que transportava essas cozinhas públicas, situação inspirada em uma foto documental desse veículo; II. montagem da cozinha e os conflitos entre o Capitão e a cozinheira Tia Maria; III. Servir a comida entre famílias e soldados esfomeados, até que o bombardeio terrificante tem início. As personagens da cena foram Tia Maria, sua Ajudante, o Escoteiro, o Motorista Soldado Faz-Tudo e o Capitão, além das diferentes figuras que circularam no momento do rango, com os atores e atrizes se revezando para construir as diferentes personagens e situações. Tia Maria é uma figura real da Coluna Prestes, marchou de São Paulo/SP até Piancó/PB, onde foi assassinada, sempre comandando o fogão do afamado Juarez Távora. A cena da Cozinha Pública foi realizada duas vezes, com diferentes atrizes desempenhando o papel de Tia Maria, trocando as personagens que apareciam para comer, levantando perspectivas bem diferentes para a mesma situação.
A segunda cena experimental realizada foi a da Enfermaria Improvisada, tema que já havia aparecido no jogo de improviso livre a partir da imagem teatral. A cena também era inspirada em outra figura histórica da Coluna, a austríaca enfermeira Hermínia, que ingressa em São Paulo/SP e segue até o final da grande marcha, no autoexílio na Bolívia. O quadro começava com os pesadelos de outra enfermeira, com um coro de agonizantes murmurando sobre sua cabeça, enquanto a pobre mulher delirava diante de um rio de sangue imaginado. Logo Enfermeira Hermínia aparecia para resgatar a outra enfermeira, tem muito trabalho a ser feito. As duas partem para a impossível missão de cuidar dos feridos na Enfermaria Improvisada, tendo de escolher quem vão salvar, estabelecendo um conjunto de critérios para a decisão. As enfermeiras também entram em conflito com um soldado revolucionário que chega na Enfermaria e não se conforma que estão ajudando os soldados legalistas, que bombardearam a cidade, ao invés de priorizarem os revolucionários.
A terceira cena foi da gráfica do jornal anarquista, inspirado em um manifesto que foi impresso pelo jornal A Plebe, convocando os operários anarco-sindicalistas a aderirem a revolução do Isidoro. A cena transcorreu na redação de “A PLEBE”, com Edgar Leuenroth e Bárbara comemorando a recém chegada tiragem impressa da Plebe, com o Manifesto em apoio à revolução de 1924. Chega o outro editor, Matos, muito nervoso e agitado com a publicação, pedindo satisfação: Matos tem uma postura de maior moderação e observação com a revolução tenentista. O quadro explorou o conflito do período entre comunistas (o Partido havia sido criado recentemente, em 1922) e anarquistas (que vinham de expressivas mobilizações de sindicatos e greves nos últimos anos), insuflados pela Revolução Russa de 1917. Barbara e Edgar terminam saindo para as ruas para distribuir os panfletos, enquanto a gráfica é empastelada pelos secretas e tropas governistas. Edgar e Matos terminam presos, enquanto Barbara foge junto dos soldados da Coluna Paulista revolucionária. Uma ampla pesquisa desses materiais foi realizada para essa proposição, com a utilização de trechos do jornal “A Plebe” publicado em 25/07/1924, que tinham os seguintes pontos de reinvindicações para que os operários aderissem à revolução dos tenentes:
1. “A fixação do salário-mínimo para todas as classes trabalhadoras do Estado, de conformidade com a tabela dos gêneros de primeira necessidade.
2. A fixação de uma tabela de preços máximos para os gêneros de primeira necessidade.
3. O direito de associação para todas as classes trabalhadoras.
4. A liberdade de imprensa operária e a manifestação do pensamento em praça pública, bem como a revogação na lei de expulsão da parte em que se refere às questões político-sociais.
5. O direito de fundar escolas de instrução e educação.
6. A generalização do dia de 8 horas de trabalho.”
Com essa leva de improvisos e cenas experimentais, encerramos (por hora) as experimentações diretamente relacionadas com o contexto da Revolta Paulista, para partimos, enfim, a Revolta do Rio Grande do Sul. No entanto, começamos os improvisos desde um outro ponto de vista, explorando as mulheres que acompanhavam a Coluna, as “vivandeiras”. A dinâmica realizada foi a seguinte: partindo do artigo “Mulheres na marcha da coluna prestes: histórias que não nos contaram”, da pesquisadora e professora universitária Maria Meire Carvalho, cada pessoa do elenco proporia uma mulher da coluna, criando seu nome, trejeitos, personalidade e história. Contamos com a presença do cineasta Diogo Gomes dos Santos no processo, que vem registrando nossos ensaios. Assim, a dinâmica do improviso era: cada uma dessas mulheres da Coluna chegava para dar uma entrevista para um documentário, respondendo as perguntas dos documentaristas enquanto contava sua história e trajetória junto a Coluna.
As cenas que surgiram dessa dinâmica foram absolutamente surpreendentes. As personagens surgiram com muita consistência, montando um panorama de intensidades, tipos, ideologias e jeitos de relação com a coluna e seus soldados. Fomos apresentados a Dona Ernestina José do Nascimento, mulher forte que chegou na Coluna acompanhando seu marido, sempre muito ocupada para manter possível a marcha e seus afazeres invisibilizados, consciente do seu trabalho e da sua força; Onça, mulher negra dançarina de maxixe, cantadora, com domínio nas artes da sedução, feroz em sua liberdade e certeira no seu sonho de arranjar um pedaço de terra e educar os filhos depois da revolução; a jovem Isabel Pisca-pisca e sua figura frágil sonhadora, envergonhada com a falta dos dentes, iluminada pelo sonho da revolução, certa de que quando se reparte a fome ela ainda dói, mas dói menos; e a soldado Lamparina, mulher que se disfarçou de homem para integrar um pelotão de soldados revolucionários, reconhecida como grande lutadora, de jeito firme do interior do Paraná, fumando um cigarro de bosta de vaca e bebendo uma aguardente forte.
Essas entrevistas foram de fato filmada, com figuras memoráveis que certamente estarão, de alguma forma, na encenação final. Esses improvisos apontaram um poderoso caminho para nosso processo, esse de investirmos nas personagens que habitam o interior da Coluna Prestes. Seguiremos por aí nas próximas semanas, bem como nos aproximaremos dos passos do capitão de engenharia Luís Carlos Prestes e seu revolucionário Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, espinha dorsal da Coluna Prestes.