Diário Teatral da Coluna – Semana 7 – 12/12/2022 a 18/12/2022
Foi necessário intensificar as reuniões e trabalhos de produção nessa reta final do ano, antes do nosso (merecido) momento de recesso dos trabalhos. A turbulência acompanha as necessidades de manter o projeto caminhando, com todas as ações previstas em andamento, como as palestras sobre a Coluna Prestes, as conversas sobre teatro historicista e a oficina de Coro Cênico, atividades com início previsto para janeiro e fevereiro do ano que vem. Também organizar o processo de trabalho, articulando toda a equipe amarrada na realização da pesquisa, é bem desafiador, sobretudo na decolagem desse voo inicial. A produção é um dos aspectos mais sensíveis na realização de um projeto como esse.
A sala de ensaio vem confirmando uma rotina de trabalhos, sedimentando uma ordem para as pesquisas e experimentações. Abrimos o encontro com o ensaio de música, dedicado ao canto coral e individual, tanto das músicas que surgem no processo como outras do repertório de estudos musicais do Coletivo de Galochas. Depois, dedicamos um momento às pesquisas em torno do coro cênico e experimentações formais, focando um repertório expressivo teatral, uma investigação de diferentes linguagens cênicas. Na sequência, realizamos um momento de improviso livre-organizado, isso é, são trazidas dinâmicas de improviso com regras e situações de cena estabelecidas, gerando um momento de jogo criativo de encenação. Por fim, na quarta e última parte dos ensaios, realizamos as cenas experimentais (antigamente chamadas de workshops), que são indicações de improvisos com diferentes níveis de estruturação, trazidos por todes artistas envolvidos no processo como provocações disparadoras; essas provocações são ensaiadas e apresentadas na sequência, com repetição de algumas cenas depois dos comentários da direção.
No momento do coro cênico, a investigação sobre as poéticas das batalhas e da guerra de movimento seguiram. Experimentamos uma dinâmica de passagem de foco simulando um tiro com o corpo, sendo o impacto recebido do outro lado, em um movimento coreografado, com qualidade de dança. Essa dinâmica de passagem de foco foi utilizada em uma cena de coro cênico, com dois grupos se enfrentando. Esse enfrentamento foi organizado em uma contagem de tempos sincronizada com os movimentos e suas intensidades, uma cena dançada de enfrentamento de bandos, entre arapucas e tocaias. Temos aqui mais um germe de solução cênica para a representação das batalhas desempenhadas pela Coluna Prestes em sua grande travessia.
Na etapa seguinte, em que realizamos uma rodada de improviso livre-organizado, fizemos a cena-jogo “O traidor ou traidora do fogão”. Funcionava como um jogo de detetive: um grupo de soldados e vivandeiras se encontra no seu fogão para o fim de um dia de marcha da Coluna; entre elas e eles, um traidor ou traidora, que pretende desertar e entregar toda a revolução. A cena deve caminhar até que o grupo em torno da fogueira decida quem é o traidor ou traidora e o/a execute. Cada ator ou atriz desenvolveu uma personagem, através de uma condução da direção, primeiro fechando os olhos e imaginando essa figura, depois experimentando no corpo, voz e nas ações físicas. Então, com o grupo de olhos fechados, uma traidora foi escolhida sem que ninguém soubesse quem era. A cena-jogo transcorreu com muita qualidade, com figuras marcantes como uma velha preta que termina por executar o traidor escolhido pelo grupo; um homem que gosta de matar, mas que nunca trai seus ideais; o jovem convicto na revolução, que terminou morto por falar demais – ele era inocente! Cenas desse tipo criam lampejos de situações e figuras que podem, e serão, aproveitados na dramaturgia final da peça.
Realizamos algumas cenas experimentais de muita potência nessa 7ª semana de ensaio. A primeira cena foi a da “Travessia das mulheres”, episódio comentado em quase a totalidade dos livros dedicados a Coluna Prestes, incidente que ocorre no Rio Grande do Sul, quando as tropas do recém-promovido Comandante Prestes resolvem deixar a cidade de São Luiz Gonzaga e avançar em movimento, dando início ao que ficou conhecido como “guerra de movimento” ou “guerra de guerrilha”. O que se conta é que, quando as tropas precisam atravessar o Rio Paraguai, por exigência de Siqueira Campos, Prestes ordena que as mulheres não façam a travessia, deixando assim de seguir a Coluna, que não podia ter em suas fileiras mulheres. Mesmo com a ordem expressa, as mulheres atravessam o rio e encontram as tropas do outro lado, conquistando na rebeldia seu direito de marchar junto da Coluna Prestes. O improviso foi realizado em uma chave radicalmente épica, com um Coro de Mulheres que alternavam momentos de fala coletiva, repetindo as ordens de proibição de seguirem com a Coluna, com falas individuais, em que cada uma contava seus motivos e reclamava, com revolta e justeza, seu direito de seguir com as tropas; as falas sempre começavam com os dizeres: “Logo eu, que…”. Assim apareceram diferentes tipos de mulheres: uma belga que fugiu com a família dos alemães na Primeira Guerra Mundial; uma mulher preta, descendente de reis e rainhas, que tinha direito aquela batalha pela liberdade; uma mulher casada com um dos soldados, com disposição de seguir o marido até onde for, na saúde, na doença e na guerra. A cena foi muito potente, demonstrando o poder expressivo que o Coro Cênico deve desempenhar na peça.
Outro improviso experimental incrível foi o dos “Leitores da Coluna”, cena inspirada em outro fato bastante comentado nas bibliografias da Coluna Prestes, que é o das leituras de romances de diferentes tipos feitos pela tropa, que partiam os livros em muitos pedaços, que rodavam de mão em mão entre os diferentes leitores. Esse hábito era fruto da dedicação dos revolucionários de alfabetizar as tropas durante a marcha. Cena em chave dramática, apoiada em um realismo crítico, envolvia um Tenente Professor e o Soldado Leitor, que chegava querendo saber do final da peça que o Tenente Antônio tinha arrumado, “Romeu e Julieta”. O problema é que o Tenente Antônio tinha usado as últimas páginas do “Romeu e Julieta” nas necessidades que teve de fazer no mato… “Tu cagou na Julieta?!”, diz atônito o soldado Pedro. A cena encerrava com o Tenente Professor arrumando um cordel de sacanagem para o soldado, que vê enfim satisfeita sua curiosidade leitora. Esse personagem do soldado que aprende a ler na Coluna Prestes e torna-se um viciado em romances é outra dessas figuras-processos que certamente deveremos aproveitar na peça.
Por fim, existe uma parte do que é criado nos ensaios que não surge nos improvisos, que não passam pela experimentação cênica, mas que surgem das conversas e reflexões teóricas, políticas e poéticas sobre o material, debatendo sobre as descobertas, contradições e continuidades históricas que a Coluna Prestes projeta na História do Brasil, com seus ecos e desfechos reverberando até o presente de maneira espantosa. É mesmo uma surpresa estudar esse tema, que se desdobra em uma fragmentos de infinita profundidade, marcando a difícil tarefa de escolher o que contar diante dessa imensidão que foi a epopeia da Marcha da Esperança. Termino, assim, sintetizando parte do que foi sonhado e debatido nessa semana de ensaios, descrevendo algumas situações e ideias poderosíssimas, que giram em torno dessa questão fundamental: o que queremos contar sobre a Coluna Prestes pensando o tempo turbulento que atravessamos?
Entre as situações sonhadas diante dessa questão, cabe destacar alguns delírios:
- Encontro entra a Maria Bonita e uma Vivandeira para evitar o conflito entre a Coluna Prestes e o Bando do Lampião.
- Fantasmas de Canudo a partir do encontro com a Velha Sobrevivente, no dia em que a Coluna Prestes acampa por lá.
- Desenvolver a relação entre o Tenente Professor e o Soldado que aprendeu a ler, utilizando o “Romeu e Julieta” como um paralelo de um amor não admitido que surge entre os dois; o Professor consegue encontrar o livro com o texto “Romeu e Julieta”, para enfim entregar para o soldado poder ler o final; mas encontra com o Soldado em seu leito de morte, depois de ferido em combate – o presente do livro coincide com a morte do Soldado e o único beijo entre os dois. Nesse caso, “Romeu e Julieta” serve de espelho para a história trágica do Tenente e o Soldado.
- Coro de Leitores de Jornal, que, num movimento coreografado, apresentam o texto da próxima cena, com letras escritas em cada jornal.
- Coro Alegórico dos biomas que a Coluna atravessa; definir uma árvore-símbolo de cada um desses biomas.
- Na Bolívia, nos estertores da Coluna, encontro entre Prestes e um dos soldados que o acompanha desde Santo Ângelo, o primeiro que Prestes ensinou a ler e escrever; o Soldado está para morrer de impaludismo, Prestes acompanha seus últimos momentos; os dois conversam, dessa conversa toda a história da Coluna acontece.