Diário Teatral da Coluna – Semana 2 – 07/11/2022 a 13/11/2022

Diário Teatral da Coluna

 

Semana 2 – 07/11/2022 a 13/11/2022

A sala de ensaio, durante um processo coletivo e colaborativo de pesquisa teatral, tem suas alquimias particulares. São instantes efêmeros, experimentos improvisacionais únicos, que acendem poderosos faróis para todo trabalho, criam trilhas provisórias por onde o suor das experimentações cênicas vai correndo, acumulando achados em um movimento lento de precipitação, tanto formal quanto de conteúdo. Esses achados, às vezes, são gigantescos avisos de alerta. Foi o que aconteceu nessa segunda semana de ensaios.

As cenas experimentais da primeira semana apresentaram fragmentos de personagens e situações das camadas populares na Rio de Janeiro de 1922, no contexto das convulsões sociais em torno da polêmica eleição de Arthur Bernardes. A música de marchinha de carnaval “Aí seu Mé” apontou um contexto cênico poderoso de ser explorado, talvez na recepção do público antes da peça começar, com esse coro carnavalesco de protesto popular atravessando o saguão, abrindo as portas do teatro para o público invadir a apresentação.

Seguindo os experimentos, ainda na semana anterior, improvisamos a cena do Jovem Tenente que, em plena reunião do Clube Militar, despeja toda sua virulência em um discurso acusatório contra os altos oficiais, todos mancomunados em estratégias de corrupção lado a lado com as oligarquias da República Velha. Essa cena dava início as experimentações teatrais mais próximas do contexto da Coluna Prestes, mas ainda de maneira ampla, explorando a gênese do Tenentismo, movimento que iria abalar a História do Brasil radicalmente ao longo de toda década de 1920. A tarefa na semana seguinte – no caso, esta que agora relato – era seguir com as cenas experimentais dos antecedentes históricos diretos do movimento tenentista, começando com o evento considerado seminal para grande parte dos historiadores e historiadoras: o Levante dos 18 do Forte de Copacabana, ocorrido na madrugada de 05 de julho de 1922.

O plano dos militares revoltosos era impedir a posse do presidente Arthur Bernardes, eleito de maneira fraudulenta, dentro da dinâmica do voto de cabresto e das comissões verificadores que definiam o marcado jogo eleitoral do período, como acusava os que faziam oposição a Oligarquia do Café com Leite que dominava a Primeira República. Para tanto, diversas guarnições do Exército se sublevariam, entre elas o Forte de Copacabana, a Fortaleza de Santa Cruz, a Academia Militar de Realengo e a Vila Militar. As tropas revoltosas marchariam em conjunto sobre o Palácio do Catete, sede do governo federal, para depor Epitácio Pessoa e declarar Marechal Hermes da Fonseca presidente provisório, para então recontar os votos da eleição. Revisada a apuração eleitoral, a vitória do Nilo Peçanha, candidato da “Reação Republicana”, estaria mais do que garantida, mandando Arhur Bernardes de volta para suas fazendas em Minas Gerais. 

Para experimentar cenicamente esse acontecimento, foi criada uma Escaleta de Improvisos a partir dos acontecimentos históricos do Levante dos 18 do Forte de Copacabana, partindo das bibliografias estudadas sobre assunto, especialmente as descrições desse evento nos livros “A Coluna Prestes”, de Luiz Maria Veiga (São Paulo: Scipione, 1992), “Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes”, de Anita Leocádia Prestes (São Paulo: Moderna, 1995) e “O Cavaleiro da Esperança”, de Jorge Amado (São Paulo: Companhia das Letras, 2011). Transcrevo abaixo parte dessa escaleta, organizada em duas partes:

I. O murmúrio se espalha: “a procissão vai sair”

     

      1. A conspiração caminha nas cantinas, dormitórios e arsenais do exército; “a procissão vai sair” é o código para o levante militar, combinado para a madrugada do dia 05 de julho de 1922.

      1. Encontro entre Nilo Peçanha, um Jornalista do Correio da Manhã e Siqueira Campos no salão de Laurinda Lobo, a Marechala da Elegância.

      1. Encontro entre Siqueira Campos e Juarez Távora com Luis Carlos Prestes, que está acamado com tifo nas vésperas do Levante dos 18 do Forte.

    II. O levante estoura

       

        1. 1h da manhã do dia 05 de julho de 1922, Capitão Euclides da Fonseca, Siqueira Campos e Eduardo Gomes disparam o Canhão do Forte de Copacabana, a senha para que os outros fortes do Rio de Janeiro se levantem e disparem seus canhões também, começando a revolução. A expectativa com a revolução é imensa. O canhão dispara. Nenhum outro tiro responde. “Fomos traídos! Perdemos a revolução!”, sentencia Siqueira Campos.

        1. Canhões disparam da Baia de Guanabara em cima do Forte de Copacabana. O Forte está isolado. Capitão Euclides da Fonseca reúne Siqueira Campos e os outros oficiais. Declara a situação, avisa que a porta está aberta, só deve ficar o soldado ou oficial que estiver disposto a dar sua vida pela revolução. Siqueira Campos pede a palavra, faz um discurso emocionado e cativante, apaixonado e sincero, pedindo para que cada soldado ali presente fique e lute pela liberdade e honra da pátria. Assim que acaba seu discurso, dos 301 revoltosos dentro do Forte de Copacabana, ficam apenas 29. 

        1. Um Soldado, antes de sair, responde ao Siqueira Campos, expõe os motivos da sua retirada, razoáveis e convincentes: é a cena do soldado que não quer se sacrificar.

        1. Siqueira Campos e os outros oficiais e praças que permaneceram no Forte de Copacabana resolvem marchar pela Avenida Atlântica até o Palácio do Catete para depor Arthur Bernardes, mesmo sabendo que essa é uma missão suicida (o forte está cercado por milhares de soldados das tropas legalistas). Siqueira Campos baixa a bandeira do Brasil que tem no quartel, corta um pedaço de bandeira e entrega para cada soldado e oficial. Com esse retalho da bandeira nacional no peito, os 18 do Forte de Copacabana fazem sua marcha rumo a História. Só duas pessoas sobreviveram a empreitada, entre elas, Siqueira Campos. 

      A escaleta foi apresentada para o grupo e debatida. A primeira sequência não foi improvisada. Resolvemos investir trabalho cênico na segunda sequência, improvisando a madrugada da tomada do Forte de Copacabana de uma vez só, transitando pelos três movimentos da sequência (cenas a., b., c. e d.). 

      Para incrementar a cena, o compositor e diretor musical do processo criou um arranjo a partir do poema “Os Dezoito do Forte”, publicado anonimamente no jornal Correio da Manhã, periódico antigovernista do Rio de Janeiro, em setembro de 1922 (trecho do poema que foi musicado em anexo). Antes de improvisarmos a cena, ensaiamos a canção, para que fosse possível integrá-la no final da cena.

      Apesar de algumas turbulências no início do improviso, a cena experimental engatou, e a situação toda aconteceu com bastante potência, alcançando um intenso nível de fervor patriótico e militar no final. O que ligou um imenso alerta: a sequência toda soou ufanista e militaresca, da pior forma possível; em um tempo de bolsonarismo galopante e ascenso de forças a favor de um golpe militar, o improviso gerava uma leitura no mínimo ambígua, um quase libelo pró-intervenção militar, jogando água no moinho alucinado da ultradireita contemporânea.

      As crises são momentos de excelência em processos de pesquisa teatral. É quando a prova da cena, a materialização cênica de debates e hipóteses até então só teóricos, revela o que se está expressando no palco, que caminho a encenação está tomando (ou pode tomar). Debatemos intensamente o que realizamos com a cena dos 18 do Forte, e da necessidade de angular os acontecimentos da Coluna Prestes radicalmente a contrapelo, de contar os acontecidos históricos do ponto de vista das forças populares. Dar o ponto de vista dos enjeitados da História, buscando representar não apenas o que está presente na narrativa oficial e nas bibliografias, mas, sobretudo, revelar as ausências, o não dito, por meio da nossa encenação.

      A parte mais potente do desastroso e patriótico improviso dos 18 do Forte foi, sem dúvida, a cena da partida do Soldado que não quer se sacrificar. Essa situação de cena foi inspirada na dramaturgia “Coriolano” de Brecht (Bertolt Brecht – Teatro Completo – vol. 11, São Paulo: Paz e Terra, 1995), peça reescrita pelo dramaturgo alemão a partir do texto teatral original de Shakespeare. Uma das questões de Brecht nessa reescrita era, justamente, encontrar formas de representar as forças populares sem que fossem estereotipadas e unificadas, uma massa de manobra facilmente manipulável pelos personagens poderosos. Em um momento de adesão do coro de populares na revolta, Brecht destaca um personagem do coro com seu filho que resolve não aderir ao movimento, causando um instante de quebra e reflexão no interior da massa. A partida do Soldado que não quer se sacrificar no Levante dos 18 do Forte foi inspirada na mesma situação, e apontou um poderoso caminho para tratar dos acontecimentos históricos sobre o Tenentismo (que flerta perigosamente com a retórica de salvação nacional dos militares): ter nas forças populares o ponto de vista privilegiado das situações de cena, buscando uma composição dos setores da classe trabalhadora complexa, distante do estereótipo teatral do coro popular uniforme, maleável, simplista e submisso.

      Além disso, decidimos abandonar a investigação dos antecedentes históricos do Tenentismo, enfocando imediatamente na Coluna Prestes, adiantando as cenas experimentais para o período da Revolução Paulista de 1924. Esse evento, também conhecido como Revolução Esquecida, marca profundamente a história da cidade de São Paulo. É quando os militares revolucionários se juntam a Força Pública e tomam o governo da cidade, entrando em guerra com as Tropas Legalistas de Arthur Bernardes, presidente que, entre outras atrocidades, manda bombardear os bairros proletários de São Paulo com aviões de guerra, reproduzindo uma tática alemã da Primeira Guerra Mundial conhecida como “bombardeio terrificante”.

      No ensaio seguinte, foram realizadas as seguintes cenas experimentais em torno da Revolução Paulista de 1924, muito apoiadas nos livros “As Noites das Grande Fogueiras”, de Domingos Meirelles (São Paulo: Record, 1995) e “Bombas sobre São Paulo: A Revolução de 1924”, de Ila Stern Cohen (São Paulo: Unesp, 2007).

         

          • Uma jornalista recém-contratada começa seu trabalho no jornal “Folha da Noite”, em uma cena épica, de caráter confessional, retratando o contexto das mulheres do período de 1920, que começavam a trabalhar na imprensa.

          • Um homem-rato invade a cena, logo encontra um espelho: é Doutor Carlos de Campos, Governador que abandonou São Paulo nas mãos dos revolucionários. Enquanto narra seu feito de covardia, monta uma miniatura de São Paulo. Em um giro épico, o bombardeio é narrado, enquanto os prédios são derrubados. A cena termina com um soldado revolucionário chegando no Palácio dos Campos Elíseos, dando-se conta que o governador abandonou seu posto, que a cidade é agora do Estado Maior da Revolução.

          • Uma trincheira em meio aos conflitos da Revolta Paulista. Três soldados atiram contra o vazio, sem encontrar o inimigo devido a densa neblina. Um dos soldados está ferido; os outros dois debatem sobre o que fazer em meio ao tiroteio, se se arriscam a salvar a vida do soldado ferido ou não. Em meio ao debate, outra troca de tiros; um dos soldados solta um grito em defesa de Arthur Bernardes, trata-se de um soldado legalista. Os outros dois soldados não se conformam: aquela é uma trincheira de revolucionários! O Soldado Legalista percebe seu engano, está combatendo na trincheira errada! Os soldados revolucionários dão voz de prisão. O Soldado Legalista reage, é baleado. O único soldado ainda sem ferimentos sai atrás de ajuda. Os dois soldados que permanecem morrem juntos, um no braço do outro, legalista e revolucionário.

        O combinado para a semana seguinte é seguir nas investigações cênicas sobre a Revolução Paulista de 1924, ao mesmo tempo que tentamos abordar os diferentes levantes que se espalharam pelo Brasil nessa mesma e simbólica data. O enfoque aqui seguirá em torno das figuras populares, tanto praças como civis, angulando os acontecimentos sob esse ponto de vista, retratando as figuras históricas sob a perspectiva das baixas patentes e pessoas comuns. Essa parece a opção mais potente para tentarmos representar um Tenentismo de caráter popular em processo, a percepção complexa dos de baixo que lutaram o caminho tortuoso da revolução, percepção essa que, intuímos, foi a principal fonte de transformação da visão de mundo de Prestes. 

        Inclusive, também temos apontado a necessidade de realizar cenas experimentais já enfocando nosso protagonista histórico, Luís Carlos Prestes, que, nesse momento da Revolução Paulista de 1924, está em Santo Ângelo (RS), promovido a Capitão como engenheiro do exército, transferido para o Rio Grande do Sul para assumir o comando da construção de uma estação ferroviária. Mas essa já é outra investigação teatral, que será realizada semana que vem.

         

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