Diário Teatral da Coluna – Semana 16 – 13/02/2023 a 19/02/2023

Diário Teatral da Coluna – Semanas 11 – 09/01/2023 a 15/01/2023

A semana de véspera do carnaval foi um marco no processo, a fronteira de uma etapa importante da pesquisa do nosso projeto. Nas próximas semanas, chega a primeira parte da dramaturgia na sala de ensaio, a próxima etapa da nossa criação.

Os ensaios de música, com os encontros de pesquisa e criação vocal, canto coral e canto individual, atreladas ao repertório musical que está sendo criado para a encenação, seguem como um constante esteio na rotina de trabalho. Já temos 6 canções compostas, “Nós vamos invadir o seu quartel”, “Ai seu Mé”, “Palavras”, “Prece triste para uma criança morta”, “Enterro de um soldado”, “Pão da vida”. Outras estão em processo de criação. Esse repertório musical acontece por aproximações temáticas, recortes de assuntos urgentes do tema, sínteses poéticas sobre a Coluna, muito mais do que por “encomendas” advindas de cenas da dramaturgia. As canções possuem um forte caráter épico, carregam sempre uma camada narrativa ampla sobre os temas da Coluna, cantam sínteses poéticas, sensíveis, de questões que são muito profundas em nossos debates. Isso garante uma liberdade criativa para a criação dessas canções, que terminam, na maior parte dos casos, por encontrar uma cena justa em um momento ideal da peça para acontecerem.

Tivemos uma primeira oficina de dança, abordando um repertório de ritmos brasileiros pinçados dos Estados que a Coluna Prestes percorreu ao longo de sua marcha, nomeadamente maxixe, catira, xaxado, coco de roda e frevo. Vivenciamos uma experiência delicada com essa oficina, mas também muito instrutiva: a dificuldade de lidar com corpos não normativos nesse tipo de encontro, quando quem conduz as dinâmicas não está preparado para tanto. Essa experiência serviu de alerta e aviso para nosso processo, da importância de adequarmos as oficinas de dança e as coreografias da encenação as atrizes e atores que compõe nosso núcleo artístico de maneira plena, rompendo com os padrões hegemônicos com que os espaços pedagógicos dançantes podem se aprisionar. Como as outras crises que vivemos no processo, também essa abriu espaço para um debate intenso e importante, possibilitando um ajuste de rota na criação da peça, indo de encontro com toda a potência expressiva que o elenco do Coletivo de Galochas carrega.

Essa semana também tivemos um motim na sala de ensaio, no melhor dos sentidos, com o elenco intensamente demandando a chegada da dramaturgia da peça. Uma justa demanda: em processos criativos como esse que o Coletivo de Galochas desenvolve, existe uma certa angústia que se acumula nos atores e atrizes durante a fase de pesquisa aberta. A indefinição de personagens e situações, a rotina de improvisos em cima de temas e situações, as experimentações expressivas de movimentação, os laboratórios (muitas vezes caóticos, abertos), geram insegurança para o desenvolvimento da interpretação, que não consegue sedimentar nem acumular escolhas. Com certeza, existe uma pesquisa de interpretação que se realiza de maneira intensa durante essa etapa, apoiada nos improvisos e cenas experimentais, que afina, inclusive, o que será o tom da peça, a forma como acontecerão as personagens e suas relações, as dosagens entre abordagens narrativas, de caráter mais épico, com situações intersubjetivas, de caráter mais dramáticos, as pesquisas formais de expressividade cênica – tudo isso é interpretação, que se materializa em achados concretos, teatro. É justamente dessas investigações que surge matéria teatral – proto-cenas, personagens, situações, falas, gestos, composições no espaço cênico, imagens – que são o primeiro passo da criação da dramaturgia e da encenação. É dessa matéria prima que decantará o texto teatral e as escolhas de composição da peça, as poéticas e sensibilidades que serão a bússola para a criação definitiva de todas as demais áreas de criação – cenografia, figurinos, coreografia, iluminação, sonoplastia.

De qualquer forma, existe esse momento em que é preciso sedimentar escolhas, caminhos narrativos, desenvolvimento do material em personagens e situações, dentro de uma escolha poética e encadeamento expressivo geral, uma síntese crítica e criativa do material organizada potencialmente como uma peça de teatro. Nos processos criativos do Coletivo de Galochas, esse material-síntese é a dramaturgia, o texto teatral, que se torna a base para as etapas seguintes do processo criativo. Nesse próximo momento, as pesquisas abertas de improvisos experimentais e de linguagem diminuem, dando espaço para uma pesquisa a partir da dramaturgia, desenvolvendo e desdobrando as possibilidades da encenação a partir desse material – com liberdade, inclusive, de reescrever tudo. Essa porosidade, no entanto, não muda o fato de que ter uma dramaturgia altera profundamente os ensaios. E é essa a fronteira do processo criativo que estamos agora.

Então, faremos uma pausa dos encontros práticos na semana do carnaval, para que os dramaturgos possam trabalhar e escrever. A chegada da dramaturgia abrirá uma nova etapa, em que a encenação começa a ganhar sua forma definitiva. Grandes escolhas precisam ser tomadas, a possibilidade de síntese teatral que conseguimos formular desse tema gigantesco que é a Coluna Prestes, com infinitos fios que conectam a história com o tempo presente que estamos imersos, esse presente imediato que é a Coluna Prestes. Essa oportunidade revolucionária de lembrar, na tentativa urgente de resgatar a história, lutar por um passado oprimido. No tempo presente que vivemos, o esquecimento é a condição refém que os espíritos estão submetidos, trancafiados em um agora imenso. Algumas memórias são relegadas ao esquecimento pelos senhores de tudo. Apesar disso, com nossa encenação teatral, lembraremos! Um salto de tigre na memória, um sobrevoo sob os turbulentos anos da década de 1920, relembrando essa que foi a maior marcha revolucionária dessa terra chamada Brasil: a Coluna Prestes. Evento cercado de contradições de todos os tipos, que se relaciona com diferentes formas de dominação e expropriação rasgando os confins do Brasil, passando pelos Estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Maranhão, Ceará, Piauí, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Minas Gerais, além de uma rápida passagem pelo território do Paraguai e exílio final na Bolívia. O quadro que vislumbra as e os integrantes da Coluna ao percorrer todos esses lugares apontam continuidades notáveis com o que são os processos de dominação e expropriação que organizam hoje o Brasil. Já existia ali o há de mais perverso nesse projeto extrativista apoiado em grandes latifundiários, feito de milícias de jagunços misturados com os poderes políticos e jurídicos locais, um aparelhamento explicito do Estado em função das classes dominantes, violentas e barbaras. E, afinal, o que queremos dizer com nosso teatro diante disso tudo?

 

Que venha a dramaturgia.  

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