Diário Teatral da Coluna – Semana 4 – 21/11/2022 a 27/11/2022

Completamos o primeiro mês de ensaio, que passou muito, mas muito rápido. Os ensaios nunca parecem suficientes para experimentar em cena, através do inventivo e vital trabalho do elenco, tudo o que vai sendo pesquisado, de desdobrar potências teatrais encontradas nas mais diferentes fontes de pesquisa sobre a Coluna Prestes. 

As improvisações, que seguem realizadas com qualidade, abrem caminhos teatrais surpreendentes, com dramaturgia surgindo ali, no quente da cena. São descobertas que só são possíveis por conta do jogo vivo das atrizes e atores, diante da fogueira das proposições das cenas experimentais, verdadeiros saltos de paraquedas, na perspectiva de quem atua. Improvisar em uma situação contextualizada não é tarefa fácil. Atuar em um processo desse tipo é mesmo um esforço grande, de trabalho, imaginação e poesia. Envolve imaginar e investigar essas figuras sociais, encontrar situações dialéticas, capazes de confrontar contradições de diferentes níveis, buscando essa coisa difícil que é se colocar em completa perspectiva de alteridade, com os quereres e identidades das personagens que são atuadas, sustentar a cena e suas transformações, operar uma escuta muito delicada e se arriscar em momentos de intensidade. Meu mais profundo amor aos atores e atrizes. O teatro só existe pelo trabalho de vocês.

Os trabalhos da semana tinham três grandes objetivos, todos envolvendo o momento histórico da saga da Coluna Prestes que estamos, a Revolução Paulista de 1924: I. investigar dinâmicas de coro cênico; II. realizar as leituras encendas das dramaturgias experimentais; III. improvisar as cenas experimentais trazidas para a sala de ensaio. Tínhamos expectativas de levantar diferentes materiais, muito mais do que foi possível de realizar, apesar do trabalho intenso.

O primeiro objetivo de pesquisa da semana era investigar diferentes dinâmicas de coro cênico, personagem coletivo muito presente em diferentes tradições do teatro, elemento que estará presente na encenação da peça “Coluna Prestes: encruzilhadas da marcha da esperança”. Para fazer isso, selecionei três trechos do livro “As noites das grandes fogueiras”, de Domingos Meirelles, com descrições intensas do contexto da Revolução Paulista de 1924. O primeiro recorte traz a perspectiva dos soldados entrincheirados nas barricadas no centro da cidade, magros, farda esfarrapada, despertando de um longo pesadelo, em um breve momento de suspensão dos combates. O segundo trecho descreve a chegada da legião de feridos no Hospital da Santa Casa, depois que se inicia o Bombardeio Terrificante, que é quando o presidente Arthur Bernardes manda bombardear a cidade de São Paulo com aviões, mirando especialmente os bairros populares, sobretudo aqueles com concentração de operários anarquistas. O terceiro trecho segue o rastro desse horror, descrevendo as ruas dos bairros pobres do Brás, da Mooca, do Hipódromo e do Belenzinho, com centenas de mortos anônimos amontoados no cemitério esperando seu sepultamento – imagem terrivelmente presente demais nesse contexto de pós-pandemia bolsonarista. O quarto e último trecho descreve os hospitais improvisados e as cozinhas públicas montadas para socorrer a cidade, vitimada pelo bombardeio.

Partindo desses trechos, fizemos duas experimentações de coro cênico, com o elenco atuando de maneira coletiva, com o texto impresso nas mãos, desenvolvendo imagens e evoluções enquanto liam de maneira jogralizada a dramaturgia, intercalando vozes individuais com vozes coletivas, as vezes com todos falando juntos, as vezes em duplas, trios. Os coros cênicos alternavam personagens coletivas no desenvolvimento das cenas, mudando a perspectiva de quem estava descrevendo aquelas situações conforme o desenvolvimento do improviso. Existe também uma geometrização dos movimentos, sobretudo nos momentos mais coletivos, que torna as cenas de coro bem expressivas. Os trechos trabalhados foram o 1º, dos soldados na trincheira – com uma trincheira improvisada com cubos e bancos sendo montada e desmontada enquanto o Coro de Soldados e o Coro de Cidadãos atravessavam a cena – e o 2º, com o coro cênico se separando em dois sub-coros, um Coro de Feridos e um Coro de Enfermeiras.

O segundo objetivo da semana era realizar leituras encenadas das três dramaturgias experimentais escritas durante a 3ª semana de ensaios. Conseguimos trabalhar dois desses textos teatrais. A primeira dramaturgia experimental foi a cena “Os fantasmas da revolução”, quando dois soldados que fazem a vigia da Estação da Luz chamam seu capitão no meio da madrugada, estão vendo fantasmas rondando nas últimas noites, uma tropa deles. O Capitão desacredita os soldados supersticiosos, até que é baleado: os fantasmas da revolução eram reais, e o levante dos militares rebeldes junto da Força Pública começou em São Paulo – a Estação da Luz se torna, inclusive, o QG do Estado Maior da Revolução. A dramaturgia, inspirada em “Hamlet”, foi encenada utilizando a arquibancada da plateia do Teatro do Incêndio como muro da estação, com um jogo de níveis. Não conseguimos aprofundar a montagem da cena, a ideia era mesmo realizar ume leitura encenada, só isso, mas a situação deu conta de objetivar os murmúrios conspiratórios que tomavam a sociedade da época em um momento revolucionário, utilizando os fantasmas, que não sabemos se são ou não reais ao longo da cena, até a grande revelação revolucionária. A outra dramaturgia que experimentamos foi a cena “O general e o paisano”, inspirada em uma passagem do diário da Coluna Prestes, em que o general Isidoro Dias Lopes presenteia um civil com uma patente de Cabo por um ato de bravura; o paisano, por sua vez, quer saber se ele é um criminoso ou não, já que matou gente, e nunca tinha participado disso que é a guerra. O paisano, agora cabo, pergunta ao general o que é essa revolução pelo qual matam e morrem, e ouve sem muito entender a explicação empolada do general positivista. Cena bem executada, que traz em situação a relação entre hierarquia militar e ideal as vezes genérico e moralista que movia parte do movimento tenentista.

O terceiro objetivo, como de praxe no modo de trabalho do Coletivo de Galochas, era a realização das cenas experimentais, improvisando o repertório de situações e figuras apontadas por todes teatristas envolvidos no processo de pesquisa. Como investimos bastante trabalho nas dramaturgias experimentais e improvisos de coro cênico, só foi possível experimentar uma proposta. Fizemos a cena experimental do Palácio do Catete, com o Presidente Arthur Bernardes ao lado do seu Ministro da Guerra, General Setembrino de Carvalho, e do Chefe da Polícia, Marechal Carneiro da Fontoura, decidindo o que fazer diante da escalada da revolução paulista e aumento dos conspiradores por todos os cantos da capital. A cena tinha como intuito flagrar o momento de decisão pelo bombardeio terrificante, um dos mais cruéis atos de um presidente, a decisão pela estratégia de bombardear populações civis para diminuir a moral das tropas e fazer com que os revolucionários desistam da cidade. A cena terminava com um documento que foi enviado por Arthur Bernardes endossando o bombardeio, uma necessidade diante de uma guerra em que não poderia ver perdida a moral do país.

No último encontro da semana, diante do amplo material que se está acumulando sobre a Revolução Paulista de 1924, realizamos uma reunião ampliada de dramaturgia, com o objetivo de debater o que será o centro da nossa narrativa, o que de imprescindível vamos teatralizar diante do extenso mar de conteúdos em torno da Coluna Prestes. Por que nós, do Coletivo de Galochas, estamos contando essa história? Debatemos a relação entre estruturas panorâmicas e estruturas focadas diante desse material, consolidando a certeza de que estamos diante de uma peça desempenhada por diferentes quadros épicos, num modelo radicalmente episódico. Queremos expor o funcionamento do país, resgatando figuras históricas e evidenciando continuidades. Temas como a pandemia da gripe espanhola, o voto de cabresto, as greves, as teorias eugenistas, o surgimento das políticas de repressão como o DOPS e a aquisição de gás lacrimogênio, a utilização da guerra de guerrilha, todos esses são elementos que, de alguma forma, devem surgir na nossa peça, com a Coluna Prestes atuando como uma espécie de eixo de ligação da década de 1920, evidenciando a formação de um conjunto de acontecimentos históricos que enformam continuidades extensas, que imprimem na história do Brasil uma marca que persiste, até os dias de hoje.

Para encerrar, transcrevo abaixo a lista de quadros que temos no horizonte sobre a Revolução Paulista de 1924. Através da experimentação dessas cenas, teremos um panorama amplo sobre esse importante momento da Coluna Prestes e da história da cidade de São Paulo. O objetivo da semana seguinte será a experimentação cênica dessa lista de quadros para, enfim, adentrarmos a jornada de Luís Carlos Prestes e seu Batalhão Ferroviário em Santo Ângelo.

 

Quadro da Revolução Paulista de 1924:

I. Os Fantasmas da Revolução.

II. Nas trincheiras de São Paulo.

III. Enfermaria Improvisada.

IV. Estado Maior da Revolução.

V. As Águias e o Bombardeio (Palácio do Catete)

VI. Cozinha Pública

VII. O panfleto da gráfica anarquista clandestina

VIII. Retirada de São Paulo.

 
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